A Zona Franca de Manaus (ZFM) foi alvo de recente ataque pela União Europeia que informou — por comunicado à imprensa, de 19 de dezembro de 2013 — ter iniciado consultas no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) sobre tributação discriminatória do Brasil, incluídos os incentivos da ZFM sobre mercadorias importadas, ademais de "auxílio proibido aos exportadores brasileiros". O motivo alegado é sempre o protecionismo, ainda que seja igualmente protecionista o intuito que ampara a pretensão europeia.
Este procedimento de consultas poderá levar o Brasil a enfrentar o Painel de julgamento na OMC sobre o regime dos incentivos. Algo errático e incompreensível por parte da UE, já que a ZFM opera há mais de 40 anos, e, passadas diversas rodadas de negociações da OMC sobre subsídios (especialmente a de Uruguai), nunca foi contestada. Diante da atecnia da demanda europeia, ao não encontrar respaldo sequer no Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC), e por pretender confrontar a própria Constituição brasileira, impõe-se a imediata e necessária defesa dos interesses nacionais por todas as instituições do país.
A ZFM não é um programa episódico de protecionismo de empresas ou de fomento regional. Por isso, a melhor resposta que o Brasil pode dar a essa ousadia diplomática europeia seria renovar a confiança na ZFM e o Congresso Nacional exercer sua soberania constitucional para aprovar a PEC 103, de 2011, que inclui o artigo 92-A ao ADCT da Constituição e prorroga os benefícios da ZFM por mais 50 anos, a estender-se até 2073.
A ZFM é uma questão de Estado, uma das mais expressivas atitudes constitucionais para assegurar a unidade nacional, pela proteção estratégica da região amazônica, preservação do seu meio ambiente e biodiversidade, mas também para contribuir com a qualidade de vida, trabalho e dignidade do povo amazonense. Os objetivos econômicos dos benefícios são secundários, destes o Brasil até poderia prescindir, pois não significam protecionismo.
Só quem não conhece a ZFM pode duvidar das finalidades dos seus incentivos e insurgir-se contra sua continuidade. Por uma, porque as dificuldades logísticas, a empregabilidade e capacidade de fixação de investimentos reclamam uma ação interventiva do Estado; por duas, porque a renúncia fiscal regional mantém-se plenamente equilibrada com as demais regiões, de acordo com dados fornecidos pela Receita Federal do Brasil; e por três, porque o volume de arrecadação pelo Estado é superior em quase 70% sobre as receitas transferidas pela União.
Para situar a existência jurídica da ZFM, foi no governo de Juscelino Kubitschek, que veio a Lei 3.173, de 6 de junho de 1957, como uma espécie de "porto franco", como empreendimento coordenado com o Plano de Valorização Econômica da Amazônia, então regulamentada pelo Decreto 47.757, de 2 de dezembro de 1960.[1] Porém, somente com o Decreto-lei 288, de 28 de fevereiro de 1967, a ZFM iniciou suas atividades, quando foi criada a Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), que passou a administrar a ZFM, instituída conforme seu artigo 1º, a saber:
"Área de livre comércio de importação e de exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário, dotado de condições econômicas que permitam seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância a que se encontram os centros consumidores de seus produtos".
A continuidade da ZFM, bem como seu prazo, foram recepcionados pelo artigo 40 do ADCT da Constituição de 1988, in verbis:
"Art. 40. É mantida a Zona Franca de Manaus, com suas características de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais, pelo prazo de vinte e cinco anos, a partir da promulgação da Constituição.
Parágrafo único. Somente por lei federal podem ser modificados os critérios que disciplinaram ou venham a disciplinar a aprovação dos projetos na Zona Franca de Manaus."[2]
Mais tarde, a Emenda 42, de 19 de dezembro de 2003, introduziu o artigo 92 ao ADCT, para adicionar dez anos ao prazo fixado no artigo 40 acima.
Os artigos 40 e 92 do ADCT, ao fixarem os prazos assinalados acima, conferem segurança jurídica aos investimentos e confirmam a função da ZFM como instrumento do desenvolvimento regional.[3]Não poderia ser diferente.
A ZFM tem por finalidade criar no interior da Amazônia um centro industrial dotado de condições econômicas para permitir seu desenvolvimento, com vistas, logicamente, ao desenvolvimento nacional e à superação de desigualdades regionais, objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 3º, da Constituição Federal, assim como nos artigos 43 e 170. Por conseguinte, o alcance da legislação disciplinadora da concessão de benefícios fiscais relacionados à ZFM deve ser balizado pelos princípios constitucionais que justificam a sua continuidade.
Quanto aos benefícios fiscais concedidos à empresa localizada na ZFM, conforme o Regulamento Aduaneiro (Decreto 6.759/2009), tem-se a isenção do Imposto de Importação (II) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), na importação de insumos, a saber:
"Art. 505. A entrada de mercadorias estrangeiras na Zona Franca de Manaus, destinadas a seu consumo interno, industrialização em qualquer grau, inclusive beneficiamento, agropecuária, pesca, instalação e operação de indústrias e serviços de qualquer natureza, bem como a estocagem para reexportação, será isenta dos impostos de importação e sobre produtos industrializados (Decreto-Lei no 288, de 1967, art. 3o; e Lei no 8.032, de 1990, art. 4o). (...)
§ 2o A isenção de que trata este artigo fica condicionada à efetiva aplicação das mercadorias nas finalidades indicadas e ao cumprimento das demais condições e requisitos estabelecidos pelo Decreto-Lei no 288, de 1967, e pela legislação complementar."
Não obstante o fato de o dispositivo acima fazer referência a isenção, o que se verifica, em realidade, é um diferimento da cobrança do Imposto de Importação — frequentemente tratado como suspensão do imposto —, o qual será cobrado quando da saída de mercadorias da Zona Franca de Manaus acaso destinadas "para qualquer ponto do território aduaneiro".
Confirma-se, no Decreto 7.212, de 15 de junho de 2010 (Regulamento do IPI), cujo artigo 95, prescreve como isentos do imposto:
"I - os produtos nacionais consumidos ou utilizados na Amazônia Ocidental, desde que sejam ali industrializados por estabelecimentos com projetos aprovados pelo Conselho de Administração da Suframa, ou adquiridos por intermédio da Zona Franca de Manaus ou de seus entrepostos na referida região, excluídos as armas e munições, perfumes, fumo, automóveis de passageiros e bebidas alcoólicas, classificados, respectivamente, nos Capítulos 93, 33 e 24, nas Posições 87.03 e 22.03 a 22.06 e nos Códigos 2208.20.00 a 2208.70.00 e 2208.90.00 (exceto o Ex 01) da TIPI (Decreto-Lei nº 356, de 15 de agosto de 1968, art. 1º); (...)
Suspensão
Art. 96. Para fins da isenção de que trata o inciso I do art. 95, a remessa de produtos para a Amazônia Ocidental far-se-á com suspensão do imposto, devendo os produtos ingressarem na região por intermédio da Zona Franca de Manaus ou de seus entrepostos."
A incidência do Imposto de Importação, de seu turno, encontra-se beneficiada por redução do tributo, verbis:
"Art. 512. (...)
§ 5o Para os produtos industrializados na Zona Franca de Manaus, salvo os bens de informática e os veículos de que trata o § 2o, cujos projetos tenham sido aprovados pelo Conselho de Administração da Superintendência da Zona Franca de Manaus até 31 de março de 1991 ou para seus congêneres ou similares, compreendidos na mesma posição e subposição da Nomenclatura Comum do Mercosul, constantes de projetos que venham a ser aprovados no prazo de que trata o art. 40 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a redução referida no caput será de oitenta e oito por cento (Decreto-Lei no 288, de 1967, art. 7o, § 4o, com a redação dada pela Lei no 8.387, de 1991, art. 1o)."
Em suma, o Imposto de Importação sobre os insumos importados assinalados acima poderá incidir quando da saída dos produtos industrializado para qualquer ponto do território aduaneiro, sujeito à redução de 88%.[4]
Verifica-se, ainda, suspensão da Contribuição ao PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação na importação de insumos a serem utilizados em processo de industrialização na ZFM, a saber:
"Art. 262. Fica suspenso o pagamento da contribuição para o PIS/PASEP-Importação e da COFINS-Importação nas importações, efetuadas por empresas localizadas na Zona Franca de Manaus, de matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem para emprego em processo de industrialização por estabelecimentos industriais instalados na Zona Franca de Manaus e consoante projetos aprovados pelo Conselho de Administração da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Lei no 10.865, de 2004, art. 14-A, com a redação dada pela Lei no 10.925, de 2004, art. 6o)."
Quanto às remessas de insumos nacionais à ZFM, ao destinarem mercadorias para "consumo" ou para "industrialização", estas assumem a condição de "exportação ficta", como prescreve o art. 506 do Decreto 6759/2009, bem como o art. 4º de Decreto-Lei nº 288, de 1967, in verbis:
"Art 4º A exportação de mercadorias de origem nacional para consumo ou industrialização na Zona Franca de Manaus, ou reexportação para o estrangeiro, será para todos os efeitos fiscais, constantes da legislação em vigor, equivalente a uma exportação brasileira para o estrangeiro."
A principal consequência dessa equiparação reside na desoneração dos produtos nacionais remetidos à ZFM, alçadas à condição de imunidade às exportações. Como salientam Geraldo Ataliba e Cléber Giardino, o efeito dessa equiparação "é atribuir ao ato equiparado o mesmo regime jurídico do equiparante. Assim, a operação da remessa de mercadorias à ZFM tem, desde então, para fins fiscais, os efeitos de uma exportação brasileira para o exterior".[5] Note-se, portanto, que não há que se falar em concessão de isenção, mas, sim, de imunidade, na medida em que as remessas de mercadorias de origem nacional à ZFM correspondem a típica "exportação ficta".
Nenhuma novidade. Para as exportações, o texto constitucional vigente prescreve que não incidirão impostos sobre produtos destinados ao exterior, a título de IPI (artigo 153, parágrafo 3º, III) ou ICMS (artigo 155, parágrafo 2º, X, "a"), bem como contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico (artigo 149, parágrafo 2º, I, com as mudanças decorrentes da Emenda Constitucional 33, de 11 de dezembro de 2001); e, do mesmo modo, na hipótese dos serviços, não se aplicando o ISS (artigo 156, parágrafo 3º, II) e o ICMS (artigo 155, parágrafo 2º, X, "a"), nos casos em que este pode incidir, além da Contribuição ao PIS e da Cofins, quanto às receitas decorrentes de exportação.
A equiparação em tela abarca ainda o ICMS. O artigo 5º, da Lei Complementar 4, de 2 de dezembro de 1969, ao seu turno, "concede isenção do imposto sobre circulação de mercadorias, e dá outras providências", dispõe, em seu artigo 5º, que "continuam em vigor o artigo 4º do Decreto-Lei 288, de 28 de fevereiro de 1967, e legislação posterior pertinente à matéria nele tratada".[6]
Destarte, confirma-se que a aquisição de insumos, bens e mercadorias estrangeiros por empresas localizadas na ZFM, inclusive de origem europeia, é amplamente beneficiada pelos incentivos fiscais relacionados à importação, na totalidade do valor do produto importado; e os produtos nacionais destinados à Zona Franca, pela equiparação à exportação, especialmente quando tenham em sua composição produtos estrangeiros (muitos provenientes da Europa), tampouco poderiam ser onerados, por um princípio de não discriminação, como prescreve o artigo 150, II da Constituição Federal.
A ZFM não pode ser prejudicada por interesses europeus episódicos, mas deve ser estimulada a prosseguir[7] no seu caminho vitorioso de intervencionismo estatal em favor do desenvolvimento nacional e redutor da histórica e internacionalmente reconhecida desigualdade regional, em favor da população ali residente, afora a proteção do meio ambiente da floresta amazônica, pela integração e ampliação dos controles necessários à sua defesa.
A continuidade da ZFM é, portanto, de capital importância para o desenvolvimento nacional. Não se deve temer as pressões internacionais, especialmente aquelas despidas de fundamentos jurídicos válidos. Tratados internacionais existem para serem cumpridos, mas sempre que estes não conflitem com a Constituição e com a soberania do país. E qualquer alegação de contrariedade com o acordo de subsídio da OMC deve ser acompanhada de provas efetivas do dano à indústria. Nesse particular, bem examinado, o custo dos produtos e a competitividade da indústria na ZFM merecem até mesmo atenção por parte do governo, porquanto ainda superior à média internacional.
Revista Consultor Jurídico, 12 de março de 2014
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