sexta-feira, 19 de agosto de 2011

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DECISÃO
Júri decide sobre culpa consciente ou dolo eventual de motorista envolvido em acidente
A competência constitucional reserva ao Tribunal do Júri a avaliação aprofundada das provas quanto à configuração da conduta do réu como culpa consciente ou dolo eventual. Com esse entendimento, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a pronúncia de motorista supostamente embriagado que teria dirigido em alta velocidade e se envolvido em acidente fatal.

Segundo a defesa do motorista, as provas não demonstrariam a ocorrência de dolo eventual, já que o pronunciado somente teria colidido com o veículo da vítima depois que um terceiro carro o atingiu na traseira. A impetração sustentou que o fato de estar embriagado no momento do acidente não poderia afastar a análise de sua conduta e culpa e do nexo de causalidade entre os fatos, sob pena de ocorrer responsabilização objetiva.

Para o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), nessa fase do processo prevaleceria o princípio in dubio pro societate, já que a pronúncia faz apenas um juízo de admissibilidade da acusação. A valoração ampla das provas, afirmou o tribunal, seria feita pelo júri.

Ainda segundo o TJSP, apesar de as testemunhas que se encontravam no veículo do réu apoiarem a tese da defesa, as demais – duas do terceiro veículo, uma acompanhante da vítima falecida, a delegada de polícia e um policial militar – divergiam.

O ministro Jorge Mussi concordou com o TJSP. Segundo seu voto, a pronúncia enquadrou o caso em dolo eventual, com submissão ao Tribunal do Júri, em razão do suposto estado de embriaguez e do excesso de velocidade, o que está de acordo com a jurisprudência do STJ.

Na avaliação do relator, seria necessário analisar profundamente as provas para diferenciar o dolo eventual apontado pelo TJSP da culpa consciente sustentada pela defesa. A diferença entre os dois institutos foi explicada pelo ministro com citação do doutrinador Guilherme Nucci: "Trata-se de distinção teoricamente plausível, embora, na prática, seja muito complexa e difícil. Em ambas as situações o agente tem a previsão do resultado que sua conduta pode causar, embora na culpa consciente não o admita como possível e, no dolo eventual, admita a possibilidade de se concretizar, sendo-lhe indiferente."

Para o relator, essa complexidade não seria possível de ser resolvida pelo STJ em habeas corpus. Ele acrescentou que, de acordo com o princípio do juiz natural, o julgamento da ocorrência de dolo eventual ou culpa consciente deve ficar a cargo do júri, que é constitucionalmente competente para julgar os crimes dolosos contra a vida. A decisão foi unânime.

Coordenadoria de Editoria e Imprensa STJ

Dolo eventual e culpa consciente em acidente de trânsito

Por Pierpaolo Cruz Bottini

A distinção entre culpa consciente e dolo eventual tem ocupado não apenas as pautas acadêmicas, mas também o noticiário nacional. Trágicos acidentes de trânsito decorrentes de graves violações das normas de cuidado, com vítimas fatais, trazem a discussão sobre a natureza dos delitos dos motoristas: homicídio doloso ou culposo? Dolo eventual ou culpa consciente? A competência para o julgamento é do juiz singular (culpa consciente) ou do Tribunal do Júri (dolo eventual)?

A resposta a tais questões exige um retorno à dogmática e aos conceitos desenvolvidos pelas escolas e juristas em busca de definições que orientem o intérprete das normas penais.

O ato típico do delito é composto por aspectos objetivos — conduta descrita na norma penal — e subjetivos. Neste ultimo plano verifica-se se o resultado — ou a periculosidade — é fruto da vontade final (dolosos) do agente, do agir imprudente (culposos), ou está ligado àquela zona de consciência cinzenta que caracteriza o dolo eventual e a culpa consciente.

E aqui surgem os problemas, justamente nesta fronteira imprecisa entre o dolo eventual e a culpa consciente, conceitos de difícil definição diante da complexidade de "reproduzir linguisticamente de maneira adequada um fenômeno psicologicamente sutil" [1]. Mas a identificação de critérios que revelem os contornos de tal sutileza é importante porque existem reflexos práticos fundamentais ligados à natureza de cada instituto, como a definição do tipo penal — com grandes diferenças de pena em abstrato — e da competência para o julgamento.

As teorias que buscam diferenciar dolo eventual da culpa consciente são variadas, mas podemos destacar três: a teoria da indiferença, a teoria da representação e a teoria objetiva do risco.

Para a teoria da indiferença — defendida por Engish e parte dos autores brasileiros — o dolo eventual se caracteriza pela indiferença do autor quanto à lesão ao bem jurídico, enquanto que na culpa consciente a causação do resultado é considerada inaceitável pelo agente. Assim, o condutor de um veículo agirá com dolo eventual se constatada sua indiferença quanto ao resultado morte de qualquer pedestre ou motorista.

Critica-se tal teoria pelo reducionismo do dolo eventual. Em muitos casos, o agente tem o efetivo desejo que o resultado lesivo não ocorra, que a causação da morte ou lesão não aconteçam, mas prevê tal possibilidade e continua com seu comportamento. É o caso do motorista que viola as normas de trânsito, percebe a possibilidade de atropelar alguém, mas deseja sinceramente que nada ocorra, que ninguém entre em seu raio de ação e se machuque. Não há indiferença, no entanto existe dolo eventual porque há aceitação do risco.

Outra teoria é a da representação — Schröder e Schmidhäuser — para a qual o dolo eventual é caracterizado pela percepção do risco pelo agente. Assim, se o condutor do veículo percebe — ao ultrapassar os limites de velocidade — que cria um risco e é possível a eventual lesão ou morte de alguém em decorrência daquele comportamento, haverá dolo eventual, independente de sua vontade em relação a tal resultado — seja indiferença, seja certeza de que nada ocorrerá. A mera representação da possibilidade de uma lesão já basta para o dolo eventual.

A crítica à teoria decorre aqui de sua abrangência, pois estende demais o conceito de dolo eventual. Basta a percepção da criação do risco para o dolo eventual, mesmo que o condutor tenha certeza de que nada vai acontecer devido à sua habilidade ou ao fato de ter tomado cuidados para evitar o resultado lesivo. Roxin usa um exemplo singular para ilustrar a questão. O artista de circo que atira facas em sua assistente sabe da possibilidade de acertá-la, mas confia na não ocorrência do resultado devido à sua perícia no manejo dos instrumentos. Se, por uma tragédia, uma das facas lesiona ou mata a assistente, não há dolo eventual, mas culpa consciente, porque ausente qualquer aceitação ou vontade de resultado, mas apenas uma representação de possibilidade, insuficiente para transformar a tragédia ou a imprudência em dolo[2].

A teoria do risco vê no grau de violação da norma de cuidado o critério para a distinção entre culpa consciente e dolo eventual. Para este pensamento, o comportamento muito imprudente, que ultrapasse intensamente o risco permitido, já revela dolo eventual, independente do que quer ou pensa o autor. É a construção adotada por parte significativa da jurisprudência:
"(..) 6. Para configuração do dolo eventual não é necessário o consentimento explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em relação às circunstâncias do evento. Faz-se imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis que não se exige uma declaração expressa do agente" (STF, HC 91.159, grifos nossos).

A proposta de afastar completamente a mente do autor, o aspecto subjetivo para diferenciar o dolo eventual da culpa consciente não parece acertada porque transforma em dolosa qualquer conduta que viole normas de cuidado e cause um resultado. Qualquer imprudência que resulte na lesão ou morte de alguém será dolosa se o juiz não perscrutar a mente do autor.

Em síntese, a diferença entre culpa consciente e dolo eventual não reside no grau de risco criado, nem apenas no conhecimento dos riscos nem na indiferença em relação aos bens jurídicos, mas na agregação de todos os elementos apontados.

Tanto no dolo eventual quanto na culpa consciente o agente deve criar um risco não permitido e perceber que cria este risco. Em ambos o condutor sabe que viola normas de cuidado. Mais do que isso, em ambos o agente não quer o resultado, não deseja a lesão do bem jurídico. Ou seja, não há indiferença em relação à possibilidade de causar um resultado, mas uma sincera vontade de preservar o bem jurídico.

A distinção é: na culpa consciente o agente — por algum motivo — tem certeza que não ocorrerá o resultado, enquanto que no dolo eventual o autor tem dúvidas sobre isso e mesmo assim continua agindo. Assim, o condutor que percebe que está em alta velocidade, mas acredita que, devido à sua habilidade e perícia ao volante, evitará qualquer colisão, está em culpa consciente. Já o motorista que sabe que anda acima da velocidade permitida e representa/percebe a possibilidade de causar um acidente, tem dolo eventual, mesmo que deseje ou tenha esperança de não lesionar outrem.

O espaço entre confiar e desejar separa o dolo eventual da culpa consciente. Não se nega a dificuldade de encontrar tais elementos no processo penal, mas se quisermos manter um conceito de delito relacionado com a intenção do agente e uma ideia de Direito Penal como um conjunto de normas motivadoras e não um instrumento de imputação aleatória de resultados, não devemos abrir mão dos aspectos subjetivos, que embora sutis e de difícil revelação, são a garantia de uma dogmática mais humana[3].


[1] Derecho penal. Parte general. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997, p.427

[2] Derecho penal. Parte general. 2. ed. Madrid: Civitas, 1997, p.420

[3] Para uma panorâmica geral sobre a discussão atual entre dolo eventual e culpa consciente, ver CANESTRARI, Stefano, Dolo eventual e colpa consciente. Giuffré: Milano, 1999

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.

http://www.conjur.com.br/2011-ago-09/direito-defesa-dolo-eventual-culpa-consciente-acidente-transito

sem ingenuidade

Gozo do ódio é alternativa ao controle social

Por Rodrigo Bueno Gusso

"O coração humano, tal como a civilização moderna o modelou, está mais inclinado para o ódio do que para a fraternidade". (Bertrand Russel)

A compreensão da organização humana em grupos sociais, de uma forma ou outra, pode ser desenhada entre certa relação de ordem ou de desordem ou harmonia e conflito[1]. Como se fosse fácil delimitar tamanha experiência social em uma definição precisa desses conceitos. Tal conceituação suscita pelo menos algumas importantes inquietações e questionamentos, como a definição de ordem social, sob qual ponto de vista, sob quem, sob que regime de dominação, sob que aspecto de poder e, por aí vai.

Em um mundo mais que complexo e heterônomo, marcado pela dinamicidade e pela volatilidade das relações sociais, um conceito de ordem ou desordem também são submetidos à uma experiência de liquidez, de nebulosidade. As fronteiras entre uma sociologia da ordem ou do conflito se aproximam e se esvaem com tanta rapidez que nos condenam a certa sensação de estranhamento frente às questões cotidianas. As certezas de um mundo de ordem, do contrato social rosseauniano, são substituídas pela volatilidade da incerteza. Uma incerteza que marca até mesmo as relações do Estado (na forma de políticas públicas de governo) e do Direito.  Mas não nos enganemos sobre a incerteza. Sua intromissão perante o mundo do contrato, do certo e do harmônico, não significa uma extinção das dinâmicas de controle social. Antes, significa sua reelaboração. Uma reelaboração que tem nas interpretações das expressões "harmonia social" e "sociedade fraterna" (ambas citadas no preâmbulo constitucional brasileiro) o seu fundamento.

 

 

A harmonia social está assentada em uma compreensão de sociedade pautada na organização de poderes em um Estado capaz de, mediante a ordem geral e a coibição e reprimenda dos atos individuais, promover o bem estar social. Vale lembrar que o artigo 3º da Constituição Federal brasileira traz a promoção do "bem de todos" e "a construção de uma sociedade solidária", dois dos objetivos fundamentais da nossa República. Tal expressão é o que legitimaria as formas de controle, criminalização e repúdio das mais diversas formas de importunações contra essa "ordem social".  A reprovação da violência e da criminalidade são os exemplos mais factíveis. Ou seja, no campo do respeito ao bem comum, combatemos aquilo que Durkheim chamou de "anomia", nada mais do que a desintegração individual e social que levaria o indivíduo (e sociedade) à sua própria destruição. 

Mas não só. Há outras manifestações que encontram sua impossibilidade na justificativa do discurso da "harmonia social": os movimentos sociais e suas ambições, os tabus quanto ao pagamento de impostos na crença de que sejam revertidos salutarmente à população, a própria desobediência civil, são atos sociais que encontram na proibição da desordem o seu interdito. Tudo isso sob o apaixonado discurso da fraternidade e solidariedade (como a bem lembrada cantiga da manutenção de que o interesse geral deve prevalecer ao interesse individual). Em outras palavras: coibimos aquilo que uma vez intitulamos como desordem, pois ela pode vir a ser uma ameaça ao nosso grupo social; criamos mecanismos de controle para impedir (prevenir) e coibir (reprimir) possíveis ameaças ao bem estar social; e por último, elegemos uma política social pautada na solidariedade e na compreensão fraterna e amorosa como um dever-ser weberiano a ser seguido (e cobrado) por todos. Assim, não bastaria apenas uma suposta omissão do indivíduo frente ao grupo a que pertence, mas também a necessidade de que esse indivíduo promova um bem estar pautado na paixão recíproca.

Tal discurso da "harmonia" se transforma mediante a liquidez do amor fraterno como condição de possibilidade das relações sociais. Um amor herdado dos discursos religiosos como uma racionalidade imperativa na explicação da ordem social. Uma explicação que permeia uma série de políticas públicas assentadas no ideal de uma justiça social purificada (e de programas sociais que promovem o amor pelo próximo) ou de um Estado de Bem Estar. Discurso simples, apaixonado e por vezes beirando o campo da perfeição retórica, uma vez que temos a solidariedade, o amor, o fraternalismo, e a proliferação da paz como palavras de ordem. Mais ou menos nos moldes das alocuções religiosas, onde o amor é sim a palavra e o discurso a ser desenvolvido. Tal  preleção opera-se muito bem no campo do passionalismo, mais ainda na religiosidade comum, uma vez que a racionalidade não é necessária. Eu posso amar, mas o entendimento desse amor independe de sua racionalização. Isso é o que por muito tempo propomos e ficamos a espera de seus resultados. Isso é o que inspirou todo o nosso discurso social e jurídico.

Mas será que este discurso do amor conduziu à desejada expressão da harmonia social?

A cada dia se torna mais difícil vislumbrar uma sociedade "melhor" pautada nessa fala, até porque o tempo em sua espera prescreveu. Tornou-se difícil acreditar que a nossa sociedade tenha progredido ética e moralmente seguindo esses preceitos. Tentamos por muito tempo sobreviver em face de um discurso apaixonadamente harmonioso, na crença ilusória de que todo ser humano possui algo de bom, e que esse algo deve ser transmitido ao próximo. Não há mais espaço para isso! Não funcionou, erramos. Então, de que forma dar-se-ia um novo entender? Uma nova expectativa de "melhoramento social" pautado em um senso comum que possa vir a acontecer.  Difícil resposta. Ainda mais estarmos operando  no trauma do reconhecimento e no entender daquilo que foi chamado por João José Leal de  "a sociedade desajustada em que vivemos".

O médico psicanalista belga Jean Pierre Lebrun propõe um novo olhar sobre o controle social baseado na limitação e domínio do ódio. Lebrun retoma os ensinamentos freudianos de que o ódio seria mais originário que o amor. E assim, desse ódio presente "em nossa vida cotidiana, em nossas cóleras, em nossa violência, em nossa agressividade", efetivado por meio da fala, poderíamos pensar em não mais invocar o discurso da provocação do amor, mas o do controle do ódio.

O ódio como gênero de toda uma gama de imperfeições humanas. O ódio como gênero das espécies, raiva, medo, desrespeito, descontrole, ira,  inveja, etc.  Tudo isso direcionado ao outro, pois no mesmo entendimento "o ódio emerge cada vez que não reconhecemos que o outro é somente outro com nós"[2]. Lebrun afirma que devemos antes de tudo introduzir a diferença do ódio e daquilo que se chama gozo do ódio. Esse último endereçado numa instância final resultante em "assassinato e  violência", uma vez que a necessidade de renunciá-lo falhou. Assim, "de tudo isso, posso entender porque meu ódio é inextinguível, que não há nenhuma razão para pensar que eu possa me desembaraçar dele, fazê-lo desaparecer, dado que ele é um processo inerente à condição humana; mas o que, em contrapartida, deve bem se limpar com esponja, ou mesmo drenar-se, é o gozo do ódio. O gozo do ódio é precisamente o fato de deixar o ódio realizar-se, cumprir-se como se esquecêssemos que ele é apenas a resposta ao fato de que não colocamos mais a mão sobre o que a língua já nos subtraiu".

 

[3]

Talvez seja essa uma nova possibilidade. Uma releitura social não mais pautada na exegese religiosa que por muitas vezes esbarrou no racionalismo. Não há mais como exigir do outro para que este promova um habitus pautado no amor e na solidariedade, mas na obrigação de conter-se mediante uma futura reprimenda. Ou seja, para que o indivíduo venha a conter o seu ódio, suas frustrações e seu vazio. Segundo Lebrun, é necessário então o controle do "gozo do ódio".

 

 

Tanto quanto o amor, o ódio também é intrínseco ao ser humano. Fundamentado no egoísmo originário, em que todos os atos humanos surgem, pelo menos de uma significativa parte, de um egoísmo. Não há nenhum ato que não possa ser constituído mediante uma satisfação pessoal, mesmo os mais solidários. Isso não significa que a solidariedade, o bem fazer ao próximo, se extinguiram nas relações humanas, mas a honestidade de reconsiderar o lugar da satisfação pessoal pelos atos praticados. Um lugar as vezes pequeno, mas tão intenso que pode exteriorizar-se de forma violenta ou criminosa mediante a falta de contenção da explicitação do gozo do ódio.  

O discurso do ódio encontra o campo propício de atuação em espaços sociais desencontrados, questionados e confusos. Em que as dicotomias daquilo que conceituamos como certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mal, ordem ou desordem, se confundem pela dinamicidade das representações sociais que fazemos no dia a dia. Um lugar onde tudo é mutável, onde aquilo que é velho, bem como seus significados, perde-se no tempo.  Não há mais espaço para o antigo, para o durável. As coisas, e as (velhas) idéias tornaram-se descartáveis, assim como as relações humanas. É esse o conceito de liquidez de Zygmunt Bauman, ou seja, a necessidade de se adequar à fluidez da vida moderna, sob a penitência de poder vir a se tornar algo dispensável.

Se pensarmos no campo das instituições sociais, principalmente as públicas que exercem alguma forma de controle, tal fundamento não é exceção. Pois nós (homens-estado) somos constantemente forçados ou convidados a abandonar o velho para abraçar irrefletidamente o novo. Ou seja, descartamos o discurso original que legitima a existência dessas instituições, e com ele não mais nos envergonhamos em adotar novas categorias de atuação. Vejam por exemplo a energia despendida nas instituições que procuram promover (pelo menos oficialmente) a pacificação social. Falo então de todos os órgãos que compõem o sistema penal. A interferência política, a perpetuação de poder dos grupos minoritários através da impunidade, o litígio pela destinação de recursos públicos, a ferocidade da busca do totalitarismo das atribuições, o duelo pela publicização de seus atos através da mídia  como forma de reconhecimento social, e até a vaidade de seus uniformes e símbolos passaram a ser o único objetivo da existência dessas instituições.

Os aparelhos de justiça social, e consequentemente seus órgãos, há muito tempo abandonaram os legítimos interesses sociais objetivados à paz social, ao  controle da criminalidade e ao mais caloroso discurso lúdico: "a realização da Justiça", tudo foi para a mais longínqua terra do esquecimento. Promessas não cumpridas. Então, resta perguntarmos: - Haveria nesse discurso ainda algum espaço para o amor? Para a solidariedade como forma de organização social? Achamos que não! Ingenuidade demais.  Talvez daí, Lebrun tenha razão, ao elencar que na eterna aversão do amor e do ódio, seja esse gozo do ódio uma alternativa um pouco mais sincera de repensar o controle social.

 

 

Bibliografia:

BAUMAN, Zygmund. Amor Líquido. Sobre a Fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2004.

BAUMAN, Zygmund. Vida Líquida. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2007.

DURKHEIM, Émile. O suicídio. Livro II. São Paulo, Martin Claret, 2008.

 

 

LEAL, João José. Penitenciarismo brasileiro, sombra sinistra da sociedade desajustada em que vivemos. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT. Ano 83, agosto 1994, vol. 706, p. 437.

LEBRUN, Jean-Pierre. O futuro do ódio / Jean-Pierre Lebrun; organizador Mario Fleig; tradução João Fernando Chapadeiro Corrêa. Porto Alegre: CMC. 2008.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Cultrix, 1993. 


[1] Sobre o debate entre positivismo sociológico e marxismo

[2] LEBRUN, Jean-Pierre. O futuro do ódio. p. 22

[3] IDEM. p. 32.

Rodrigo Bueno Gusso é delegado de Policia Civil de Santa Catarina; especialista em Segurança Pública (PUC-RS); mestre em Direito (UNIVALI-SC); e doutorando em Sociologia (UFPR).

Revista Consultor Jurídico, 13 de agosto de 2011

http://www.conjur.com.br/2011-ago-13/gozo-odio-alternativa-possivel-repensar-controle-social


 

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